Roberto Carlos na Literatura de Cordel
Eu vi o seu novo disco
É muito bonito, é certo,
Mas cumprindo a sua ordem,
O mundo fica deserto.
Essa sua gravação
Mas eu já sofri até
Ataque do coração
Porque aqui no inferno
É de fazer compaixão.
Eu fico muito apertado
Pois o inferno já está
Por demais superlotado,
Você ganhando dinheiro
E eu ficando aqui lascado.
Importante é notar a ressignificação da música na interpretação do poeta popular. O cordel fez tanto sucesso que possibilitou a Enéias “pôr em dia os atrasados”, conforme depoimento ao poeta João Gomes de Sá. Negociado com a Editora Prelúdio, hoje Luzeiro, este folheto é editado ininterruptamente há mais de 40 anos. No seu rastro vieram a lume mais três títulos, todos de Manoel D’Almeida Filho: A Resposta de Roberto Carlos a Satanás; A Chegada de Roberto Carlos no Céu e Roberto Carlos no Inferno. Convém notar que, no inferno, as diabas se comportam como as jovens admiradoras do “rei” em sua corte terrestre:
As diabas moças gritavam
Como que ficaram loucas,
Todas pediam autógrafos,
De gritar ficaram roucas,
Porque não havia força
Que calasse aquelas bocas.
Mais conservador é Apolônio Alves dos Santos, autor do folheto A Mulher que Rasgou o Travesseiro e Mordeu o Marido Sonhando com Roberto Carlos. Outro grande poeta, Joaquim Batista de Sena, lamenta as mudanças ocorridas na Igreja Católica, imputando-as a Roberto e seus seguidores:
Vou chamar primeiramente
O grande rei do hippysmo
O senhor Roberto Carlos
Com todo seu cafonismo
Pois ele foi quem mudou
A lei do cristianismo.
A bibliografia sobre Roberto Carlos no Cordel é extensa e reflete a mentalidade do autor, com enfoque ora conservador ora liberal, indo do satírico à estória de exemplo. Manoel D’Almeida, por exemplo, era consultor da Editora Prelúdio, que além da boa literatura de cordel, editava a Melodias, a revista da mocidade, na qual Roberto era figurinha carimbada. Daí o tratamento simpático dispensado ao cantor capixaba. Joaquim Batista de Sena, por outro lado, refletia a mentalidade sertaneja, refratária a mudanças, especialmente as ocorridas no seio da Igreja.
por Vitor Rebello
Neste domingo, décimo primeiro dia do mês de setembro, não tem jeito de fugir da lembrança dos atentados terroristas. A televisão, o rádio, os jornais impressos não deixam… Todos fazem menção ao ataque às torres do World Trade Center como o maior atentado terrorista da história, num misto de lamentação e excitação. A busca pela audiência, por leitores, por ouvinte, enfim, por público, transforma a desgraça e a tristeza em espetáculo. É muito complicado perceber que de tantas rememorações daquele 11/9 de 2001, poucas sugerem críticas ao que se fez e ao que se ainda faz por aquele atentado. Infelizmente, o 11 de setembro tornou-se uma marca da ferida aberta ao norteamericanos, fazendo com que nos esqueçamos de um outro 11/9 acontecido há 38 anos no Chile, bem mais brutal, bem mais destruidor e bem mais canalha. Por outro lado, esta chancela de “maior atentado terrorista da história” mascara muitos outros crimes contra a humanidade cometida – pasmem! – pelos próprios seres humanos. O Holocausto da Segunda Guerra Mundial, a Diáspora Africana que migrou cerca de 15 milhões de africanos para servir como escravizados em todo o mundo, as próprias bombas de Hiroshima e Nagazaki, jogadas – como hoje se sabe – em um Japão sem forças, completamente liquidado. Enfim, tantas outras atrocidades da nossa história hoje ficam em segundo plano frente aos atendados de Bin Laden e cia.
Feita a crítica necessária à questão, retornemos a literatura, pois, a ela sim, vale a pena nos dedicarmos.
Que todos os temas possíveis são trabalhados pelos poetas populares, isso nós já sabemos. Nossa literatura de cordel apresenta uma multiplicidade incontável de assuntos (histórias maravilhosas, fatos históricos, biografias, opiniões, pelejas, romances, adaptações literárias, temas de utilidade pública, ficções científicas e tantas mais), mas uma das mais importantes é o fato jornalístico. Como disse Mestre Azulão no vídeo do post anterior, o cordel foi durante muito tempo o jornal do Sertão. E não apenas daquela região. Os cordelistas hoje espalhados por todo o país nos informam a todo momento das principais notícias. Muitas no momento dos acontecimentos, outras nem tanto, o que em geral permite uma maior reflexão do acontecido por parte do poeta. É justamente este o caso do 11/9. Pois, não é que Mestre Azulão, este verdadeiro vate das terras paraibanas e que hoje engrandece a Guanabara, resolveu escrever sobre o famigerado atentado? É lógico que, vindo de Mestre Azulão (poeta que este blog é assumidamente fã), o cordel tinha que vir com críticas, muitas críticas sobre toda essa questão. Logo de início Azulão relembra suas próprias impressões sobre as torres de Nova Iorque, pois afinal de contas, ele as conheceu pessoalmente:
Terror nas Torres Gêmeas – José João dos Santos (Mestre Azulão)
Como poeta repórter
Nordestino Brasileiro
Descrevo neste cordel
Um lamentável roteiro
Do mais cruel fanatismo
Num ato de terrorismo
Que abalou o mundo inteiro
Uma môça americana
Muito educada e gentil
Veio até a minha casa
Fez-me um convite febril
Para ir ao Cite Lore
Entre cordel e folclore
Representar o Brasil
(…)
Foi no dia dez de Abril
De noventa e nove o ano
Eu andando em Nova York
Isento de qualquer dano
Subi até o terraço
Daquele monstro de aço
E orgulho americano
Foi no World Trade Center
Com seus cento e dez andares
Eu contemplando a altura
Avistei muitos lugares
Dando a impressão
Que estava de avião
Ou flutuando nos ares
Do seu enorme terraço
Olhei a imensidão
Eu vi que de Nova Jersey
Vindo em nossa direção
um pouco se desviando
Passava de vez em quando
Velozmente um avião
Eu pensei naquela hora
Refletindo em minha mente
Deus defenda um avião
Se chocar por acidente
Nestes prédios e explodir
Além de se destruir
Pode matar muita gente
Pois, Azulão previu o acontecimento. Embora proposital, ao invés de acidental, aquelas duas torres eram um alvo e tanto. E comenta o atentado terrorista:
Dois anos e cinco meses
Depois da minha visita
Terroristas portadores
De crueldade esquisita
Entre vinganças e tédios
Explodiram aqueles prédios
Ação cruel e maldita
(…)
É covarde e desumano
Quem faz atos de terror
Vingar-se de quem não fez
Maldade ou crime de horror
Uma ação injustamente
Fazer que o inocente
Pague pelo traidor
Passados alguns versos, o poeta faz algumas críticas à política de “combate ao terror” do governo estadunidense:
George Bush e seu império
Que quase o mundo governa
Com seus mísseis bombardeiros
Mata, destrói e inferna
Para Bin Laden encontrar
E sem perdão lhe matar
Com todos numa caverna
Mas só tem gastado armas
Helicóptero e avião
Bombardeando cidades
Mulher, criança, ancião
Toda aquela pobre gente
Indefesa e inocente
Porém Bin Laden não
Assim, minha gente, Mestre Azulão narra mais esta barbárie que impulsiona muitas outras mais. Sem deixar de lado o humor, o Mestre apresenta suas críticas e nos brinda com mais um interessantíssimo cordel. Como de praxe, finaliza com um acróstico, isto é, com versos que são iniciados pelas letras que fazem seu nome:
Não sou a favor do terror
Da morte e destruição
Mas quem fez ou faz maldade
Recebe a compensação
Não lembram os americanos
Que há cinquenta anos
Bombardearam o Japão
Milhares perderam as vidas
Ali num ato tirano
Zuada, grito e lamento
Um desastre desumano
Logo o fogo consumiu
Agonizou e feriu
O país americano
Em respeito ao autor, é evidente que muitas estrofes ficaram de fora. Portanto, se houver interesse em ler este cordel na íntegra (vale muito a pena), só comprando com o próprio Mestre Azulão, todos os domingos, na Feira de São Cristóvão, Rio de Janeiro. Ou então, ligando para o próprio a fim de encomendar. O telefone de contato é (21) 2664-2159 ou (21) 2664-3234.
por Vitor Rebello
Mostrando mais um vez como os poetas populares estão sempre “antenados” com o que está se passando pelo mundo, temos aqui mais um cordel recém saído do forno cuja temática permanece bem viva. Apesar de já terminada, os irmãos Klevisson e Arievaldo Viana aproveitam o grande sucesso da última novela das 21h, Caminho das Índias. No cordel em questão – Descaminho das Índias ou o indiano que casou com uma cachorra – nós observamos uma velha e boa tática editorial: a utilização de dois nomes para o mesmo cordel. Esta, sem dúvida, é uma maneira “auspiciosa” de se alavancar as vendas, visto que com títulos, a obra pode agradar a mais leitores. Segue algumas estrofes retiradas do próprio sítio da Tupynanquim editora:
DESCAMINHO DAS ÍNDIAS OU
O INDIANO QUE CASOU COM UMA CACHORRA
Autores: Antônio Klévisson e Arievaldo Viana
Oh! Deus, pai celestial
A nossa terra socorra,
Esse mundo está pior
Do que Sodoma e Gomorra,
No decorrer deste ano
Um magro e feio indiano
Casou-se com uma cachorra.
Eu quando li tal notícia
Não queria acreditar
Porém o caso é verídico
Eu sei até o lugar
Da minha mente não sai
Foi em Manamadurai
O noivo é Selva Kumar.
Li o caso nos jornais
Guardei até o recorte,
Kumar agiu desse modo
Pra se livrar da má sorte,
Resolveu casar-se ali
Com a cadela Selvi
Eis o nome da consorte.
Ou será falta de sorte
Daquele pobre animal?
Eu vi a foto dos dois
Estampada no jornal
Todos em tom de mangofa
Sorriam, faziam mofa,
Daquele jovem casal.
Para que o leitor entenda
Preciso fazer um prólogo,
Pois Selva Kumar seguiu
O conselho de um astrólogo
Para uma culpa expiar…
Mesmo não vai procriar
Garantiu-me um sexólogo.
Esse rapaz quando jovem
Um grande mal praticou
Dois cachorros inocentes
Numa praça apedrejou
Por causa desse pecado
Kumar ficou aleijado
E depois disso cegou.
Um astrólogo consultou
Dizendo então: – Me socorra!
Fiquei cego e aleijado,
Isso é que ser uma porra!
Disse o Astrólogo: – Kumar
Tu vais ter que se casar
Com uma bela cachorra!
– Para expiar teus pecados
Eu encontrei uma brecha,
Vai urgente para as ruas
Ligeiro como uma flecha
Uma cadela buscar
Para com ela casar
No templo do deus Ganesha.
Assim fez o indiano
Saiu logo em disparada
Encontrou uma cadela
Jovem, bonita e prendada
Que estava se coçando
Catando pulga e matando
No batente da calçada.
(…)
por Vitor Rebello
Prova de que os artistas populares são sempre “rápidos no gatilho”, este poema em formato de cordel, escrito pelo autor nordestino Miguezim da Princesa, aborda de maneira bastante sarcástica o caso da estudante universitária expulsa de sua instituição por causar um tremendo “rebu”. O autor não poupa a paulistada e ainda menciona o controverso presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
UMA BURCA PARA GEISY
Quando Geisy apareceuBalançando o mucumbu
Na Faculdade Uniban,
Foi o maior sururu:
Teve reza e ladainha;
Não sabia que uma calcinha
Causava tanto rebu.
Trajava um mini-vestido,
Arrochado e cor de rosa;
Perfumada de extrato,
Toda ancha e toda prosa,
Pensou que estava abafando
E ia ter rapaz gritando:
“Arrocha a tampa, gostosa!”
Mas Geisy se enganou,
O paulista é acanhado:
Quando vê lance de perna,
Fica logo indignado.
Os motivos eu não sei,
Mas pra passeata gay
Vai todo mundo animado!
Ainda na escadaria,
Só se ouvia a estudantada
Dando urros, dando gritos,
Colérica e indignada
Como quem vai para a luta,
Chamando-a de prostituta
E de mulherzinha safada.
Geisy ficou acuada,
Num canto, triste a chorar,
Procurou um agasalho
Para cobrir o lugar,
Quando um rapaz inocente
Disse: “oh troço mais indecente,
Acho que vou desmaiar!”
A Faculdade Uniban,
Que está em último lugar
Nas provas que o MEC faz,
Quis logo se destacar:
Decidiu no mesmo instante
Expulsar a estudante
Do seu quadro regular.
Totalmente escorraçada,
Sem ter mais onde estudar,
Geisy precisa de ajuda
Para a vida retomar,
Mas na novela das oito
É um tal de molhar biscoito
E ninguém pra reclamar.
O fato repercutiu
De Paris até Omã.
Soube que Ahmadinejad
Festejou lá no Irã,
Foi uma festa de arromba
Com direito a carro-bomba
Da milícia Talibã.
E o rico Osama Bin Laden,
Agradecendo a Alá,
Nas montanhas cazaquistãs
Onde foi se homiziar
Com uma cigana turca,
Mandou fazer uma burca
Para a brasileira usar.
Fica pra Geisy a lição
Desse poeta matuto:
Proteja seu bom guardado
Da cólera dos impolutos,
Guarde bem o tacacá
E só resolva mostrar
A quem gosta do produto
FIM
por Vitor Rebello
Em Julho, uma amiga cearense chamada Carolina Hilst trouxe para mim o cordel recém lançado sobre o Michael Jackson (valeu Carol!). Achando que tinha em mão um “furo de reportagem” pensava que o primeiro endereço na internet a publicar alguma matéria sobre esta obra ia ser o LERCORDEL. Porém, o tempo passou rápido demais e logo escreveram na nossa frente. É como conta a sabedoria popular, transmitida pela oralidade: “bobeou, dançou”, “camarão que dorme a onda leva” ou “quem dorme no ponto é chofer”. Portanto, para não deixar de mencionar que a morte do Michael Jackson já virou cordel, segue um artigo de Iuri Rubim (publicado no seu próprio blog) sobre o cordel do astro pop.
A tradição da literatura de cordel é particularmente sensível aos momentos de comoção. Quando algum acontecimento, nacional ou internacional, mobiliza as massas, certamente um cordelista estará traduzindo em versos o ocorrido.
– O cordel tem também uma função jornalística. Há muito tempo, é um meio que o povo do sertão usa para se interar dos grandes acontecimentos. Foi assim com Lampião, Getúlio Vargas, Tancredo Neves e até com Leandro, cantor daquela dupla sertaneja – conta o cordelista alagoano João Gomes de Sá.
Pois foi o próprio João Gomes de Sá que, ao lado do companheiro Klévisson Viana, escreveu sobre a morte de Michael Jackson, um dos acontecimentos mais acompanhados, discutidos e lamentados da história recente.
Juntos, publicaram A Chegada de Michael Jackson no Portão Celestial. Apenas no primeiro dia após o seu lançamento, a obra teve 2500 folhetos vendidos nos pontos de ônibus de Fortaleza – local comum de venda de cordéis na capital cearense.
Eu sonhei que o rei do pop,
Logo após bater as botas,
Foi direto para o céu,
Fazendo muitas marmotas,
Cantando muito agitado
Feliz, tinha se livrado
De dívida, banco e agiotas.
– O que eu fiz foi uma releitura desse grande fato mundial. Apenas reproduzi algumas manifestações do sentimento do povo. Com alguns gracejos da minha parte – brinca o João Gomes de Sá.
Por “gracejos”, o poeta se refere a críticas – algumas sutis, outras nem tanto – a vários setores da sociedade brasileira. Uma delas é a existência de uma burocracia no Céu, que impediria a “admissão” rápida do cantor.
– É o que a gente vê hoje no país. No Brasil, a gente morre é na fila. Em todo canto tem essa burocracia. Daí fiz uma brincadeira com ele do tipo: “Como você já morreu mesmo, né, cara, não tem problema esperar mais um pouquinho” – explica.
As críticas também não deixam a crise do senado passar em branco. Pedindo atendimento privilegiado, Jackson pergunta a São Pedro se não haveria nenhum ato secreto em seu benefício.
Mas São Pedro eu sou um astro
Famoso no mundo inteiro!
Não tem um ato secreto
Para me atender primeiro?
– Aqui é outro processo
Não é aquele Congresso
Lá do povo brasileiro!
Para a surpresa deste Blog, o autor do cordel conta que não era fã de Michael Jackson.
– As minhas filhas chegaram a chorar com a morte dele. Mas eu nunca tive nenhuma relação com ele, apesar de reconhecer que era um grande astro e admirar algumas coisas que fez, com a canção “We Are The World”. Quando fiz o cordel, fui solidário com as pessoas que sofriam por ele – explica.
João Gomes de Sá não era fã de Michale Jackson, mas suas filhas sim
O poeta chegou a ser bastante criticado pela publicação do cordel. Outros poetas populares reclamaram da atenção dada a um astro internacional, quando ídolos como Luiz Gonzaga não tiveram o mesmo tratamento.
– Talvez seja mesmo um pouco de xenofobia. Mas o que eu não agüento é ouvir isso de poetas que sabem que a literatura de cordel trabalha com grandes acontecimentos – reage.
Eu queria dançar mais
Sabe o senhor, não empaco,
Gostava de requebrar,
Pois eu sou bom nesse taco
Dançando eu faço munganga,
Às vezes visto uma tanga
Para prender o meu saco!
Sincronia
A parceria de João Gomes de Sá e Klévisson Viana não foi programada nem combinada. Foi mais um daqueles acasos que só acontecem poucas vezes na vida.
Inspirado pelos noticiários e pela charge de um amigo, Gomes de Sá começou a fazer um cordel. Quando já tinha produzido boa parte da obra, ligou para Viana e descobriu que o colega poeta estava fazendo a mesmíssima coisa. Resolveram então publicar um cordel só, tamanha a sincronia.
As estrofes destacadas acima pertencem ao cordel “A Chegada de Michael Jackson no Portão Celestial”.
Taí Mestre Azulão!
Azulão é poeta experiente. Morador do Rio de Janeiro há 58 anos, foi um dos principais fundadores da feira nordestina de São Cristóvão (RJ), como ele mesmo conta no seu livreto “A feira nordestina, foi assim que começou” (2007), editado pela Tupynanquim editora. É na própria feira que ele possui sua barraquinha de cordéis, onde os vende em grande quantidade. Do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas (como é nomeada a Feira de São Cristóvão) ele só reclama do barulho das barracas que o impede de recitar no seu local preferido, a praça Catulé da Rocha, bem no centro da feira. Além de ser um grande repentista, Seu Azulão já escreveu mais de 300 cordéis. Sabe de cor romances que ninguém mais sabe e é também mestre de reisado (Folia de Reis). Azulão é velhinho e pequenino, mas na hora de cantar sua voz ecoa por todo o salão. Êta velhinho danado!
Fragmentos de “A Feira Nordestina, foi assim que começou” do Mestre Azulão
Quem quiser saber da feira Venha pra perto me ouvir Que vou contar em detalhes Sem aumentar nem mentir Mas num falar positivo Vou explicar o motivo Da nossa feira existir No ano quarenta e nove Vim pro Rio a vez primeira Fui visitar São Cristóvão Então por esta maneira Sem de nada conhecer Depois eu pude entender O começo desta feira Foi num dia de domingo Eu vim com meu primo João Pagar a passagem dele Que veio sem um tostão Nisso um motorista fala: – Vá lá pegar sua mala Que está no meu caminhão Eram dez horas do dia Eu vi um moreno forte Cercado de nordestinos Vindos no mesmo transporte Com uma lona no chão Vendendo fava e feijão Gritava: – Chegou do norte! Tinha até fumo de rolo Rede, rapadura e queijo Dizendo: – Aqui conterrâneo Este é puro e sertanejo Eu garanto a qualidade Você come e tem saudade Mata a fome e o desejo Algum já lhe conhecia Dizia: – Eu quero seu João, Comprava e lhe perguntava: – Tem chinelo e cinturão? Seu João dizia: – Não tem Mas esta semana vem No primeiro caminhão Eu observei um pouco Aquele povo comprar Uns chegando do nordeste Outros que iam voltar Tudo feliz e contente Numa árvore bem em frente a Senador Alencar Uns criticavam dos outros Com risada e brincadeira João Gordo vendendo as coisas Numa lona e uma esteira Outro vendilho chegou Foi assim que começou O início desta feira (…)
O cordel em todas as mídias.
14 14America/Sao_Paulo Junho 14America/Sao_Paulo 2009 por lercordel | Editar
por Vitor RebelloTaí um vídeo porreta! Tá é danado de bom!
Este aqui é uma amostra de um documentário sobre cordel que está circulando pelo youtube. Segundo a autora da obra, Gisela Matta, o filme ainda está em fase de captação de recursos. Para aqueles apaixonados pela literatura de cordel como nós, vamos torcer para que se consiga finalizar este filme, pois o material é “bom que só”…
Já diz o narrador…
tem cultura, desenho e xilografura
que encanta o mundo inteiro.
e o nordeste da gente, gente!
tudo isso está presente,
no documentário do folheteiro, viu?”
criou-se sem formosura
naquela noite correu
José Pacheco da Rocha
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado
E quem foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno neste dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar
Morreu a mãe de Canguinha
O pai de Forrobodó
Três netos de Parafuso
Um cão chamado Cotó
Escapuliu Boca Insossa
E uma moleca nova
Quase queimava o totó
Morreram dez negros velhos
Que não trabalhavam mais
E um cão chamado Traz-cá
Vira-Volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um por nome de Goteira
Cunhado de satanás
Vamos tratar da chegada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
— Quem é você, cavalheiro?
— Moleque, eu sou cangaceiro
Lampião lhe respondeu
— Moleque, não! Sou vigia
E não sou seu parceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro
— Moleque, abra o portão
Saiba que sou Lampião
Assombro do mundo inteiro
Então esse tal vigia
Que trabalha no portão
Dá pisa que voa cinza
Não procura distinção
O negro escreveu não leu
A macaíba comeu
Lá não se usa perdão
O vigia disse assim:
— Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro
Lampião: — Vá logo
Quem conversa perde hora
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo asavesso
Toco fogo e vou embora
O vigia foi e disse
A satanás no salão:
— Saiba, vossa senhoria
Aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não
— Não senhor, satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que têm aqui pra fora
Lampião é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade
Disse o vigia: — Patrão
A coisa vai arruinar
Eu sei que ele se dana
Quando não puder entrar
Satanás disse: — Isso é nada
Convide aí a negrada
E leve os que precisar
Leve três dúzias de negros
Entre homem e mulher
Vá na loja de ferragem
Tire as armas que quiser
É bom escrever também
Pra virem os negros que tem
Mais compadre Lucífer
E reuniu-se a negrada
Primeiro chegou Fuxico
Com um bacamarte velho
Gritando por Cão de Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Trangença
Na casa de Maçarico
E depois chegou Cambota
Endireitando o boné
Formigueiro e Trupizupe
E o crioulo Quelé
Chegou Benzeiro e Pacaia
Rabisca e Cordão de Saia
E foram chamar Bazé
Veio uma diaba moça
Com a calçola de meia
Puxou a vara da cerca
Dizendo: — A coisa está feia
Hoje o negócio se dana
E disse: — Eita baiana
Agora a ripa vadeia
E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Clavinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero
Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada
Disse: — Só na Abissínia
Oh! Tropa preta danada
O chefe do batalhão
Gritou: — As armas na mão
Toca-lhe fogo, negrada!
Nessa voz ouviu-se tiros
Que só pipoca no caco
Lampião pulava tanto
Que parecia macaco
Tinha um negro nesse meio
Que durante o tiroteio
Brigou tomando tabaco
Acabou-se o tiroteio
Por falta de munição
Mas o cacete batia
Negro embolava no chão
Pau e pedra que pegavam
Era o que as mãos achavam
Sacudiam em Lampião
— Chega, traz um armamento
Assim gritava o vigia
Traz a pá de mexer doce
Lasca os ganchos de Caria
Traz o birro de Maçau
Corre vai buscar um pau
Na cerca da padaria
Lucífer mais satanás
Vieram olhar do terraço
Todos contra Lampião
De cacete, faca e braço
O comandante no grito
Dizia: — Briga bonito
Negrada, chega-lhe o aço
Lampião pode apanhar
Uma caveira de boi
Sacudiu na testa dum
Ele só fez dizer: — Oi!
Ainda correu dez braças
E caiu enchendo as calças
Mas eu não sei de que foi
Estava a luta travada
Já mais de hora fazia
A poeira cobria tudo
Negro embolava e gemia
Porém Lampião ferido
Ainda não tinha sido
Devido a sua energia
Lampião pegou um seixo
E o rebolou num cão
A pedrada arrebentou
A vidraça do oitão
Saiu um fogo azulado
Incendiou-se o mercado
E o armazém de algodão
Satanás com esse incêndio
Tocou um búzio chamando
Correram todos os negros
Os que estavam brigando
Lampião pegou olhar
Não viu mais com quem brigar
Também foi se retirando
Houve grande prejuízo
No inferno nesse dia
Queimou-se todo dinheiro
Que satanás possuía
Queimou-se o livro de pontos
Perderam seiscentos contos
Somente em mercadorias
Reclamava satanás:
— Horror maior não precisa
Os anos ruins de safra
E mais agora essa pisa
Se não houver bom inverno
Tão cedo aqui no inferno
Ninguém compra uma camisa
Leitores, vou terminar
Tratando de Lampião
Muito embora que não posso
Vos dar a resolução
No inferno não ficou
No céu também não chegou
Por certo está no sertão
Quem duvidar nessa história
Pensar que não foi assim
Querer zombar do meu sério
Não acreditando em mim
Vá comprar papel moderno
Escreva para o inferno
Mande saber de Caim
Uma festa anunciada
Nos arredores do céu
Agitou a bicharada
E provocou um escarcéu
Convidando bichos de asas
A um reservado coquetel
O convite era animado
Ia ter festa dançante
Não precisava ir arrumado
E nem com roupa elegante
Era só voar com cuidado
Pra se divertir bastante
Mas a festança celestial
Provocou muito ciúme
Teve bicho que ficou mal
Pois nunca teve o costume
De tentar voar sem asas
E virou logo um azedume
Quem tinha asa pra bater
Tratou mesmo de se arrumar
A araponga logo foi ver
Se o periquito já tinha par
E o papagaio queria saber
Quando a gaivota ia pra lá
De todos os convidados,
Tinha um especial.
Era o correto urubu,
Autêntico líder musical,
Que foi falar com o sapo,
Seu compadre e amigo leal
A festa no céu animou o sapo
Mas o urubu foi logo falando
“só chega lá quem sabe voar,
E quem não pode fica escutando
A gente cantar, dançar e brincar
Enquanto a lua estiver brilhando”
O sapo bem que pediu ajuda,
Mas com o pedido negado,
Partiu logo pra luta
A fim de enganar o coitado.
E quando o urubu bobeou,
Ele deu um golpe inusitado
Entrou num saco grande,
Que o Urubu levaria à festa.
Ao subir ficou meio hesitante,
Até que lá de cima viu a floresta
“que visual mais fascinante”,
Era a sua opinião mais modesta
De lá de cima dava pra ver
Também muita desolação.
Bicho sem árvore pra esconder
Rio doente com a poluição.
A natureza sofria sem dizer,
Vendo toda essa destruição.
Enquanto o sapo tudo via,
A viagem pro céu continuava.
As aves voavam com alegria,
Enquanto o urubu tocava,
Até o sapo perdeu o medo,
E no saco já rebolava
O ritmo era bem variado
Ia de valsa a samba no pé
E o urubu, entusiasmado,
voava até de marcha ré
quando surgiu algo engraçado
veio do saco, um grito de “oléé”.
E já na entrada do céu
Tinha muita diversão.
Passarinho fazendo rapel,
E a águia rindo com gavião,
Fizeram feijoada e sarapatel
Para os gulosos de plantão.
Lá no meio da folia,
Tava um verdadeiro show
Todo mundo se divertia
Com samba, rap e rock´n roll
E o sapo, de tanta alegria,
Caiu na gandaia e se esbaldou
Mas no meio da cantoria,
O sapo se assustou
Viu o urubu e entrou numa fria
Com um salgadinho ele se engasgou
E o compadre, que algo pressentia
Chegou no amigo e logo intimou
“Chegou a hora da verdade
Você vai ter de desembuchar
Fala como é que bicho sem asa
Vem pro céu sem saber voar
Você devia ta é na sua casa,
E pra lá é que tu deve voltar”.
O sapo, que não é camaleão,
Mudou de cor e perdeu a graça
Ficou branco, azul, cor de carvão
Se pudesse virava até fumaça.
Decidiu enrolar seu amigão
Pra não ter que contar a trapaça
“Compadre aproveite a dança,
A festa ainda vai melhorar
Vamos que a noite é uma criança
Eu te ajudo a escolher um par,
É melhor balançar a pança,
Do que ficar parado como está”
O urubu, que não era bobo,
Apertou o companheiro
Tentou fazer o sapo contar de novo
Como foi parar no festeiro
E a conversa virou papo de doido,
O enganado contra o cascateiro
Enquanto a conversa rolava
Os bichos dançavam a valer
Tinha passarinho embriagado
Fazendo discurso pra aparecer.
Até a cegonha, mais recatada,
Ainda procurava o que comer
E o urubu, injuriado,
Já estava era decidido
Queria desmascarar o sapo,
Pois temia ter sido iludido
E ficar com fama de otário,
É quase igual a de bicho traído
O sapo desconversava,
Pulava pra lá e pra cá.
Cantava, dançava e brincava,
Pra o amigo urubu despachar.
Cada vez a situação piorava,
Mas o golpe ele não ia entregar
Depois de muito escutar,
O urubu se deu por vencido.
A festa estava por terminar
E alguns bichos já haviam descido,
Quando o urubu decidiu voltar,
No saco, o sapo já estava escondido.
Voltando para a floresta,
Começa a viagem de descida.
O vôo transcorre normal
Até que o saco dá uma remexida.
E quando o urubu vê a bagagem,
Acha o amigo casca de ferida
Já no caminho de volta,
Começa a grande discussão
Largar ou não o sapo lá de cima,
Pra se esborrachar no chão.
O impasse permanece,
Sob um clima de tensão
“Compadre não se apresse
Ao tomar tal decisão.
É melhor esperar um pouco,
E me soltar pertinho do chão.
Afinal você não é louco
De perder um amigão.”
O urubu, que estava uma brasa,
Não teve muito que pensar.
Soltou o amigo sem asa
Pra ver se ele podia voar.
O sapo caiu direto em casa
E numa pedra foi se estatelar
Mas Deus, Nosso Senhor,
Analisou toda questão
E ao sapo cascateiro
Concedeu o seu perdão
Ele juntou os pedacinhos
E contornou a situação
E desse dia em diante,
O sapo ganhou uma lição,
Por querer voar sem asas,
Passa a vida pulando no chão.
Olhando o céu lá debaixo
E coaxando pedindo perdão.
por Heleine Fernandes
“Vamos começar uma conversa comprida…”
Cordel é o nome que se dava em Portugal e Espanha aos folhetos em que eram impressos textos com rima e métrica, feitos para serem cantados ou cantados antes de serem escritos. Esta tradição – que aproxima o Ocidente ao Oriente, Disney a Sherazade e as Mil e uma noites, começada antes de Cristo andar sobre as águas, por um povo que falava grego! – desembarcou na América com o descobrimento.
Aos povos nativos, moradores das terras “virgens”, foi imposta uma nova língua e uma nova cultura, a do colonizador estrangeiro. O texto rimado e musical europeu foi de encontro com a vivência ameríndia, que similarmente produzia relatos cantados e dançados. Devido à relação de força que caracterizou a conquista das terras americanas, pouco da cultura indígena sobreviveu, não podendo-se contudo ignorar intervenções nos vocábulos de língua portuguesa, na alimentação, na maneira do falar, nos costumes, na religião e nas lendas. O transporte de negros de África, feitos escravos no Novo Mundo, modificou ainda mais os bons modos europeus que por aqui se aventuraram.
As histórias que primeiro ecoaram nas lonjuras do sertão nordestino, foram as que fizeram sucesso do lado de lá do oceano, nas praias do velho mundo português e espanhol. Posteriormente, novas histórias foram criadas ou recriadas a partir daquelas, baseando-se na sensibilidade dos caboclos, cafuzos, mulatos e mamelucos do Brasil. O Nordeste, berço da primeira capital, acolheu a tradição oral, expressa pela a cantoria e pelo repente. Estes textos, feitos em forma de poema para mais facilmente serem memorizados, tinham como autores homens do povo, na maioria analfabetos, contratados para animação de festas de casamento , aniversário e até velórios.
Quando o trabalho com a terra era a única maneira de garantir a sobrevivência, o cantador seguia o caminho torto da literatura, passarinhando pelas freguesias para não morrer de fome. Os textos escritos no ar por estes poetas, com a chegada tímida da imprensa no interior do país em fins dos anos de 1800, puderam então ter as letras carimbadas em livrinhos que sempre tinham uma imagem na capa, a xilogravura. A sua venda se fazia nas acaloradas feiras sertanejas.
“A noiva sertaneja”, xilogravura de J. Borges, cordelista e xilogravurista pernambucano. XILO, que significa “madeira”, somado a GRAVURA, designa o nome desta arte de gravar figuras em madeira. A matriz talhada serve de matriz (o mecanismo parecido com o do carimbo) para a reprodução do mesmo desenho várias vezes. Esta técnica, que seviu muito ao cordel no Brasil, é originária da China, havendo registros de sua existência desde o século VIII.
Mulato: mistura do negro com o branco europeu.
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